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Cap. 2

Capítulo 3 - O Desafio de Bruno

W.I.P.



Notas do Autor

Há pessoas que gostam de obras tristes. Eu também aprecio-as, elas têm mais facilidade em se conectar ao espectador, e há momentos em que você está para baixo e quer escutar uma música ou ler um conto triste para se sentir entendido. Mas é diferente quando se trata de uma história, pois você não dedica um instante, você dedica dias ou meses. E, até chegar lá, provavelmente a tristeza vai ter passado e você estará acompanhando pelo engajamento que a narrativa te dá, então é bom que a história tente ao menos amadurecer os personagens. Eu estou falando sobre isso para avisar que no terceiro capítulo constam assuntos de fragilidade emocional e palavrões, mas não leve como um sinal para desistir de ler. Eu estou bem e não apoio a autodepreciação. Dito isso, eu também agradeço meu amigo Thomas por ter me ajudado com a capa desenhando os olhos. Valeu!!!

〜 L.C.


Após o anúncio do desafio e o consenso de Miguel, Bruno afirma com a cabeça e aponta à sua esquerda, indicando com o dedo uma porta velha que um dia fora verde do outro lado do pátio. Repentinamente, Darwin interrompe a fala do franzino.

— Espera aí, Miguel. Você sequer prestou atenção? Ele falou “um de vocês”, então a proposta foi direcionada a nós três. Não venha falando asneiras por nós. Isso parece furada, então eu não concordo.

Bruno atira seu olhar contra Darwin e o encara de cima a baixo.

— Uma vez que o desafio fora aceito, não há volta — retrucou imperativamente, contrastando com seu tom calmo de segundos atrás, e começou a andar em direção à sala assombrada, sem mais nem menos.

Ele e Miguel partem e os outros dois, incrédulos, vão atrás deles. Não era justo. Não mesmo. Onde já se viu arcar com as consequências da escolha de outra pessoa? Ainda mais de um tolo como Miguel? Era como se ele fosse uma âncora e Darwin e Cadu fossem parte da corda que a segurasse, indo água abaixo junto a ele. Agora, o esquisito guiando-os só pesava ainda mais os seus declínios. Não era de se esperar nada bom, ou qualquer coisa, vindo de Bruno.

Eventualmente, eles chegam ao local. Além do estado velho, não havia nada de único naquela porta. A pequena janela acima dela os permitia notar que lá dentro era escuro. Bruno apalpa a maçaneta rugosa com os dedos e a gira, revelando-os um pedacinho do interior e reafirmando-os de que, aparentemente, era apenas uma sala velha.

“Vai ser fichinha”, pensou Miguel. “Seria mais difícil se fosse um lugar que ao menos desse medo, mas é só um depósito, e provavelmente o zelador ainda deve usá-lo e esse cara só quer meter um medinho na gente para provar seu personagem”.

Mas, enquanto ele pensava nisso, Cadu achava o contrário: “Este moleque só pode estar querendo tirar onda com a gente. Primeiro, ele inventa esse conto besta sem pé nem cabeça, e aí ele nos leva a uma sala que nem escondida está. Qualquer um, ou até eu, deve ter passado em frente a ela uma vez aqui no colégio.”

De repente, um pombo voa ao redor deles e os distraem. Ao circular em frente à porta semiaberta, a ave para no ar e pousa sobre a cabeça de Bruno, que não parece se importar. O pombo emite sons e gira a cabeça freneticamente, confuso.

— Pombos... — diz Darwin. — São animais capazes de mapear quilômetros por onde já sobrevoaram em suas vidas. São tão bons nisso que eram usados como meio de comunicação desde o Egito Antigo. Eles se orientam por meio de campos magnéticos, dos astros e até pelos sentidos vitais, como visão e olfato.

— Onde quer chegar? Quanto mais você fala, mais perdemos tempo! — indaga Miguel, impaciente. — Vejamos, agora são...

Quando o loiro olha seu relógio de pulso, vê que o mecanismo parou de funcionar e os ponteiros estão vibrando, apontando em direção à porta! Darwin continua a explicar.

— É aí onde quero chegar. Os pombos daqui costumam viver nos telhados, e hoje faz frio, o que quer dizer que muitos estão retornando aos seus ninhos. Este na cabeça do Bruno deve ter nascido aqui no colégio, então deveria conhecer este lugar de ponta a ponta.

Ele então pega o pulso esquerdo de Miguel e o gira alguns graus, fazendo com que os ponteiros do relógio se ajustem ao ângulo e continuem apontando para o depósito.

— Ele parou porque não reconhece este lugar e seu senso magnetorreceptor está instável! Uma força magnética sobrenatural vinda lá de dentro está atraindo os ponteiros do seu relógio, provando isso! Isto não é uma sala comum!

Assim que Darwin apresenta sua teoria com provas, Miguel estremece e sente a fivela de seu cinto vibrar sozinha, também sendo puxada. Ele nota que apenas a de Bruno não sofre nada, mesmo que ele seja o mais próximo à porta.

— Já chega! — berrou Cadu, se aproximando de Bruno sem sofrer atração alguma, já que não vestia nada metálico e seus shorts eram de elástico. Ele agarra a gola da camisa do pálido. — Se isso for alguma pegadinha, é bom parar! Qual é a sua, hein?! Trata de se livrar desse imã que você colocou lá dentro e colaborar conosco sem conversa fiada!

O pombo voa para longe e Bruno encara Cadu, ainda indiferente e com a respiração normal. Ele pega o braço do que acabara de falar e o estende em direção ao interior do Alte Kaution, fazendo as pontas dos seus dedos avermelharem e formigarem. Mas que merda está acontecendo?!

— Seu sangue tem ferro e, pelo visto, está doidinho para perfurar suas unhas e ser atraído lá para dentro. Vai querer ser o primeiro a entrar, então? — Bruno diz de forma maliciosa, fazendo a ardência nos dedos do outro aumentar.

— Larga ele! — diz Miguel ao empurrar Cadu para longe e o poupando de ter seus dedos estourados. — Eu entrarei!

— Pois bem — Bruno abre a porta completamente, fazendo a força magnética curiosamente parar. — Boa sorte.

***

Miguel então entra na sala sem dar ouvidos ao esguio e a porta se fecha atrás dele. Vendo por dentro, não era tão escuro assim, devia ser a luz lá fora que desse aquela impressão. Ao escanear os arredores, ele percebe que, em torno dos montes de tralhas, há uma mesa larga de madeira com um pano no centro. Além disso, ele percebe que o Alte Kaution é frio por dentro, mesmo sem ventilação.

Ele deve se controlar para não se intimidar com aquilo. Por que deveria? O magnetismo parou, a iluminação aumentou e seu suéter o protege do frio. Não há o que temer. Além do mais, se por algum acaso desistir, é só dar meia-volta e abrir a porta novamente. Tão fácil quanto pegar um táxi. Ele se vira em direção à porta e debocha.

— Então esse é o depósito assombrado, Bruninho? Um minuto aqui vai ser...

Trink.

Ela... trancou? Miguel vira o corpo inteiro para trás e tenta alcançar a maçaneta no escuro, e então percebe que, na verdade, a porta não tem fechadura alguma.

Então era impressão sua. Não tem como a porta ser trancada sem ter fechadura, não é? Não é? Droga, sua respiração está pesando. Ele dá um suspiro e vira novamente, tentando ignorar aquilo. Mas, se o som não veio da porta, então de onde veio? Teria algo caído no chão? Um rato? De qualquer forma, ele tenta pensar em outra coisa. “Esquece isso. É apenas minha mente querendo convencer-me de que há algo aqui. Eu vou completar o desafio, vou conseguir a caneta preta e vai dar tudo certo. Vai dar certo, eu conseguirei a caneta...”, e assim, a palavra caneta repetiu-se na mente de Miguel, ofuscando seus pensamentos errados, ou talvez apenas os empurrando para um lugar não tão distante.

Em meio ao delírio, ele observa o pano sobre a mesa remexer e subir, como se houvesse algo por baixo. Visto o tamanho do pano, não podia ser algo grande ou... vivo. Pelo relevo, é possível distinguir o formato cilíndrico do objeto misterioso, que era fino. Uma caneta! Isso, é uma caneta! Talvez seja isso que tenha feito o barulho!

Antes que Miguel pudesse levantar o pano e clamar seu prêmio, a suposta caneta começa a girar debaixo do tecido. O garoto recua quase imediatamente e observa a rotação compassada daquilo, quase hipnotizado. À primeira vista ele nem percebe, mas, enquanto girava, a caneta também se alongava.

Alongava, esticava, aumentava de tamanho... cada vez chegando mais perto da borda do pano para revelar sua verdadeira forma. É só nesse estágio que Miguel nota a situação bizarra em que se meteu. Então, o objeto finalmente cresce o suficiente para as pontas se revelarem por trás do pano e, ao invés de uma tampa de caneta, tudo que o rapaz pôde ver foi uma ponta afiada e brilhante.

“Não... não, não, não, não está certo isso. É um arpão!”, gritou na mente enquanto recuava o máximo que podia, até que suas costas ficassem contra a porta. “Se eu ficar mais tempo aqui, o arpão crescerá até que perfure meu peito!”, mas, quando tentou calcular o tempo restante, seu relógio já estava inativo devido ao magnetismo de antes.

Nada daquilo fazia sentido. Cada fenômeno que ocorrera não havia relação um com o outro ou algum nexo próprio sequer. O arpão gira e está tão próximo de Miguel que ele pode ver seu reflexo na superfície metálica.

Nele, ele vê um lugar cinza, um lugar morto. Um quarto vazio, sem janelas, sem tinta e com apenas uma cama onde deita um indivíduo. Mesmo sendo um reflexo, Miguel escuta sons vindo dele, ruídos de choro e solidão – um sofrimento que o remete dos piores momentos de sua vida. O indivíduo rola na cama e revela seu rosto: é o próprio Miguel, só que maior e mais velho. Assim, a visão se esclarece.

Um asilo. Um Miguel idoso e sem mais nada a perder padece em sua cama igualmente velha, onde deitaram muitos outros que já passaram para o outro plano. Não há Cadu, não há Darwin, não há vida alguma além da sua própria, decadente. Já se via morto ali, pois estava esquecido.

Se a dor é certa, por que não acabar agora? Por que lutar por uma caneta, se no fim não haverá sucesso algum?

A premonição no reflexo se desfaz e Miguel abre os braços em derrota. O arpão já estava grande o suficiente para que a ponta rasgasse seu suéter enquanto girava.

— Já está muito grande. Não há espaço nem para abrir mais a porta — murmura, batendo na porta para que notassem seu desespero, mas nada. — Já era. Eu escolhi isso... Darwin! Cadu! Não entrem aqui! Vocês irão morrer!

Ele fecha os olhos, mas, de repente, a porta abre e o empurra para frente. Por sorte, a lâmina do arpão estava do lado oposto. Uma mão o agarra e o puxa para fora do Alte Kaution. Darwin retira Miguel e o arpão perfura o chão, deixando uma marca profunda e fumegante. A porta se fecha sozinha logo em seguida.

O loiro cai no chão e se recusa a abrir os olhos, ainda não ciente de que foi salvo.

— Miguel! Ei, Miguel! — Darwin e Cadu gritaram em uníssono.

Ele abre os olhos e vê os dois, respirando pesado. Só a visão da porta fechada lhe dá calafrios.

— Eu consegui?

— Não. Ficou apenas meio-minuto lá — Bruno responde. Sua expressão demonstrava... decepção? Sangue se acumula nos olhos de Miguel e ele se levanta assustadoramente rápido.

— Você! Eu quase morri lá dentro! Tinha um arpão! Nem sei explicar! Eu... EU VOU TE MATAR!!!

Cadu o segura antes que faça qualquer besteira novamente. Bruno ri e se agacha em frente a Miguel, seus olhos claros o remetendo do reflexo do arpão.

— Aquilo que você viu foi o Ding. Ele ou ela. Não é alguém — disse o magro. — É algo. Ele te dá visões, emite odores e até sons. Mas, no fim, nada é real. Você só é derrotado porque quer, porque sua mente é fraca. Pelo visto sua inteligência emocional é bem frágil, hein, Miguel? Meio-minuto...

Miguel, com os olhos marejados de pavor e ódio, move seu braço contra a força que Cadu estava impondo e dá um soco em cheio no queixo de Bruno, que é tirado de seu equilíbrio e cai de costas no chão. Ele ri novamente e tira o chapéu, limpando os lábios ensanguentados.

— Acabaste de provar meu ponto.

 Cadu agarra Miguel e o distancia ainda mais de Bruno até que se acalmasse. Darwin observa-os e chega a uma conclusão que já tinha em mente, mas não quis dizer aos amigos, pois soaria rude: Bruno não está ali para ajuda-los. Era bom demais para ser verdade. Além de vencer este tal de Ding, terão que vencer seu orgulho.

Bruno é seu inimigo.

Darwin e Cadu entreolham-se, vendo que chegaram a essa mesma conclusão. Uma pessoa só não é capaz de vencer o Ding, independente de sua força mental. Aquela sala é designada para enfraquecer qualquer um e, de alguma forma, a “coisa” sabe a fraqueza de quem a enfrenta. Confiante, Darwin caminha e olha abaixo para Bruno, pondo o sapato perto de seu rosto.

— Eu irei, mas não só.

Cadu larga Miguel, uma vez que este já estava calmo, e levanta-se.

— Somos dois!

Bruno põe o chapéu de volta e olha para os seus rostos, levemente intimidado. Eles... estavam confiantes. Genuinamente confiantes. Mas não importava, pois todos têm um ponto fraco, e ir em dupla não iria ajudar muito. Além de se preocuparem com seus pensamentos, teriam que assegurar que o outro não se deixasse por vencer. Se um cair, leva o outro junto.

— Não... — interrompeu Miguel, no chão e ainda trêmulo. — Não podem ir. Vão morrer. Eu não deixarei que vão! Vamos embora daqui, foda-se esse cara e esse bicho! Conseguiremos a caneta de outra forma!

— Tá louco, Miguel? Vai deixar a gente na mão assim? — Cadu indaga, ainda próximo do amigo. — Vai mesmo satisfazer o sadismo do Bruno?! Lembre-se do que ele falou: uma vez aceito o desafio, não há volta! Fique aqui fora ou venha com a gente! É tudo ou nada!

Enquanto isso, Bruno sorrateiramente rasteja em direção à porta e a abre de novo, dessa vez mais fundo. A atenção de Miguel abandona Cadu ao ver aquele lugar escuro e sentir seu pulso tremer de novo. A força magnética!

— Ca... Cadu...

— O que foi, seu frango?

— A porta! Serei puxado! Me segura, por favor! NÃO QUERO VOLTAR A VER AQUELE TROÇO!!!

Por estar mais próximo desta vez, o relógio e a fivela do cinto são puxados com mais força. Miguel agarra a canela do amigo firmemente com ambas as mãos, fazendo com que Cadu também seja arrastado.

— Ótimo! Assim, seremos três! Vamos! A gente vai dar um pé na bunda do Ding, confia em mim! Vingar-te-emos!!!

Darwin também é atraído com força para dentro da sala pelo cinto, concordando e sendo consumido pela escuridão do Alte Kaution.

— A mesóclise não combinou muito, mas é isso aí! Venham logo, vocês dois! — ele puxa Miguel pelos pés, o qual puxa Cadu.

A porta então se fecha em um grande estrondo, assoprando uma enorme fumaça na cara de Bruno. Ele, do lado de fora, gargalha e inclina as costas contra a parede, olhando uma grande torre com um relógio no horizonte, após o muro da escola. Faltam treze minutos para o primeiro horário.

***

Miguel se esconde atrás dos dois, encolhido no chão entre eles e a porta para ficar o mais longe possível do Ding. Ele nota que o cenário voltou ao normal: o pano estava lá, perfeitamente centralizado na mesma mesa. Ele dá longos suspiros e se acalma, voltando a racionalizar e se sentir seguro, acompanhado. Além do mais, será mais difícil de perder desta vez, pois não há como cair no mesmo truque em dobro. Não há incertezas que possa esconder agora. Não há nada a perder.

Darwin nota o desespero de Miguel sumir e espia ele pelo canto do ombro. Ele voltou a sorrir. Esse é o Miguel que ele conhece. O ambicioso, o potente, o que age. É uma boa hora de pedir instruções. Afinal, ele era o único experiente dali.

Psiu. Miguel, o que é esse pano?

— É onde o Ding se esconde. Pelo menos, comigo foi assim. Ele emerge de baixo daí, como se fosse uma borboleta a emergir do casulo. Você percebe quando ele acorda.

— Entendi. Então basta não enfraquecermos em frente dele. Que tal...

Antes que Darwin sugerisse algo, Cadu interfere.

— E se fecharmos os olhos? Não veremos nada, não sentiremos nada além de nós mesmos. Não tenho medo de mim. Sei meus defeitos.

Eles contemplam a ideia, mas Miguel balança a cabeça, como se discordasse.

— Fale por ti. Eu não confio nisso, não. Ele realmente vira algo. Ele tenta te matar, mesmo. Cegar-se vai só te vulnerabilizar.

Cadu ignora e fecha os olhos mesmo assim, desencadeando uma implicância em Miguel, que dá um chute em sua canela e começa a resmungar.

Darwin olha para os dois e ao pano na mesa, notando que, se apenas continuarem a conversar como sempre fazem, os sessenta segundos passarão como um falcão a cruzar os céus. Que beleza. Ele sorri e cruza os braços, escorando-se na parede. Nem interfere, pois quer que o tempo passe despercebido e a “ameaça” também.

Trililililililim!

Ele é despertado do sossego e se vira, olhando a luz vinda da janelinha acima. O sinal tocou? Já?! Miguel e Cadu também escutaram, e os três agora olham para trás, congelados. Bem, chegar uns segundos atrasados não seria o problema... mas e o Bruno? Ele tem aula também. Vai abandoná-los? Pior que era bem provável que sim. Darwin instintivamente agarra a maçaneta.

— Espera! Não abra! — Miguel grita. Ele aponta com o dedão ao pano.

Trililililililim!

De fato, o som não vinha de fora, mas sim daquele bicho maldito. Que criatura malandra. Darwin solta um ar pelo nariz e estala com a língua, emitindo sons de tsk, tsk.

— Então é assim que ele tenta nos fazer desistir — murmurou em tom analítico. Cadu suspira em alívio no fundo e volta a fechar os olhos. — Boa tentativa, Ding.

Darwin encara o tecido. O som para logo que seus corações se acalmam. Até que é divertido ver o quão longe essa criatura vai. Será mesmo que não tem limites? E se ele puxar o pano do nada? Nada disso! Não é maluco como Miguel! Mas se bem que assustar a coisa de volta seria bem satisfatório. Droga, de onde vêm estes pensamentos? Ele sente seus dedos tremerem, loucos para fazer isso... ele está perdendo o controle sobre os próprios instintos. Não! É isso que ele quer! Não pode se deixar por vencer pela tentação. As pontas chegam a formigarem e avermelharem... espera, o magnetismo! Porra! Por que só nos dedos?!

De repente, Darwin avança em direção à mesa e tenta arrebatar o pano contra a sua vontade... mas, vindo debaixo da costura, uma mão líquida e prateada enrola-se em torno de seu pulso como uma munhequeira. Ela tem garras que perfuram a pele do rapaz até sangrar. Tem textura de água, mas é cintilante como mercúrio... espera, mercúrio? Miguel grita de susto e Cadu só abre os olhos agora.

— Ai, meu Deus! O que você fez, seu animal?! — gritou Cadu, avançando para empurrar Darwin e livrá-lo, mas este o indica que pare.

— Não chegue perto! Isso é mercúrio!

Assim que o aviso foi dado, os outros dois tapam o nariz e recuam imediatamente. Mercúrio é tóxico quando inalado e muito perigoso de manipular com as mãos nuas. Um mínimo corte e você pode ser infectado. “Espera... os furos! Não acredito! Esta coisa quer me matar injetando mercúrio na minha corrente sanguínea! Desta forma, morrerei independente do que fizermos! Acabou para mim!”, pensa Darwin, esbranquiçando e sentido suas pernas estremecerem. Ele sente fisgadas nas veias, o metal percorrendo por elas livremente e dando uma leve coceira. É a pior sensação do mundo. Dá vontade de vomitar.

No reflexo do metal, Darwin pode ver uma imagem distorcida tomar vida, mas não era apenas uma refração qualquer: ele vê luzes coloridas, todas vindo de aparelhos que parecem ser hospitalares ou pertencerem a algum tipo de laboratório. Duas figuras aparecem, uma jovem e outra adulta. Um deles é ele mesmo e o outro... é Paulo. Os dois parecem estar loucos, como se tivessem abandonado sua humanidade há tempos. Ambos viram e olham para o Darwin espectador, sem esboçar emoção alguma. Ele dá um tapa no líquido e a visão se desfaz nas ondas e respingos.

Enquanto isso, Cadu está ficando vermelho de tanto segurar a respiração. O Alte Kaution é muito apertado quando se tem três pessoas. Enquanto um morrerá intoxicado, os outros morrerão sem fôlego, sufocados pelas próprias mãos. Mas então, uma fala de Bruno ecoa na sua mente: “Ele te dá visões, emite odores e até sons. Mas, no fim, nada é real.”

Nada é real. Você só é derrotado porque quer.

Cadu, destemido, tira a mão do nariz para pensar: mercúrio não é magnético. É diamagnético – o que quer dizer que ele é repelido por uma força magnética externa. Isso significa que não é ele quem impõe aquele magnetismo... é o próprio “núcleo” do Ding, seja o que for sua forma verdadeira. A atração sempre é ativada quando alguém quer entrar ou ele quer forçar isso. Cadu é o único que sobra por não vestir nada que o atraia além de seu sangue. “É isso!”, grita em sua mente após chegar na conclusão.

Ding! — ele ruge. — Vem cá, seu pamonha! DUVIDO VOCÊ ME VENCER!

Todos sentem uma onda de impacto vinda de Ding que faz todos os objetos sujeitos ao magnetismo vibrarem e, quando alcança a mão de mercúrio, ela é repelida para longe do pulso Darwin e desaparece no ar como uma miragem. Ele olha para onde ela estava perfurando sua pele e nota que, na verdade, não há ferimento algum. De fato, a dor era apenas formada por estímulos cerebrais. É aliviante, mas assustador. Assustador como este ser pode convencer seu corpo das coisas mais dantescas. Ele se distancia, seguro.

Poeira toma conta do centro do Alte Kaution enquanto a mesma vibração oscila. O pano levita a cada impacto, pairando no ar enquanto um grito altíssimo ecoa das profundezas de seu interior – um grunhido estranho e selvagem.

Uryaaaah!!!

Vindo do vão entre o pano e a mesa, flechas são disparadas em direção a Cadu. Uma perfura o peito, outra a coxa, mais uma vai contra o baço e, para finalizá-lo, uma atravessa seu pescoço. Ele engasga com a dor, nem conseguindo gritar. Darwin e Miguel observam em horror. Ele está pregado na porta como um grande panfleto.

“Caralho, que dor insuportável”, pensa. Ele ergue a cabeça e olha para baixo, tremendo. Não há sangue. Claro que não há. As flechas são de mentira, nunca atravessaram seu corpo. Basta ter fé nisso. “Vencerei. Vencerei. Vencerei!”, Cadu repete a palavra na cabeça enquanto tenta desprender-se da parede. Ele bota muita força e... ué?

As pontas se desprendem como se fosse manteiga e ele cai no chão, ainda com as quatro flechas fincadas pelo tronco.

— É isso aí! — Miguel comemora.

Mas então, Cadu sente um peso enorme por trás, como se as lâminas dos projéteis fossem anilhas. Ele se vira para aliviar um pouco o esforço, mas suas costas grudam no chão e ele é arrastado em direção a mesa.

— As pontas de ferro das flechas serão atraídas em direção ao Ding! É porque eu não estava vestindo nada que pudesse ser puxado magneticamente até então. Maldito!

Quanto mais perto chega, maior é a força, e as flechas vão atravessando cada vez mais sua carne. Chega a um ponto em que ele começa a ser levantado do chão. Cadu grita em desespero e fecha os olhos. Darwin sua frio e Miguel desvia o olhar. Ele sente o corpo colapsar com força contra a mesa e um frio absurdo consumir seu corpo, sendo absorvido pelo Ding... mas, enfim, tudo é cancelado.

Uma pessoa abre a porta do Alte Kaution. É Bruno, com um sorriso falso estampado no rosto. Os três olham para ele como se tivessem sido acordados de um pesadelo coletivo. A luz exterior ilumina a sala como um arco-íris após a tempestade.

— Parabéns. Passou-se um minuto. Agora caiam o fora daqui — ordenou em um tom impaciente que satisfazia aos três.

— Vai beijar a Stephanie como compactuamos? — perguntou Miguel.

— Sim. Darei o selinho. Tens minha palavra.

Os olhos de Miguel enchem-se de lágrimas felizes e ele pula para fora da sala, correndo pelo pátio enquanto grita. Darwin ri e logo se levanta também, oferecendo uma mão a Cadu, que aceita e ergue-se do chão, espalmando a poeira para longe de sua regata e notando que as flechas sumiram.

— Conseguimos. Você foi o mais forte de todos, cara. Aguentou até o fim — Darwin diz. Sua voz carrega apreciação. — Como pôde?

— Sinceramente, eu não sei. Só sei que eu não estaria tão confiante se tivesse ido sozinho como o Miguel foi na primeira vez. Não há segredo. Se há, não descobri. Talvez nunca descobrirei.

— Essa é a graça de viver.

Darwin e Cadu compartilham um aperto de mão e logo saem correndo, juntando-se a Miguel na comemoração. Os três saltam, dançam e riem em meio à multidão de adolescentes.

Mesmo com o céu nublado, suas felicidades eram o mais belo Sol da paisagem. Bruno observa-os, descontente, e fecha a porta do Alte Kaution. Não podia negar que havia cultivado um certo respeito por eles ali, mas, em seu mundo, confiança é um pecado e sentimentos são a luxúria.

***

O plano foi um sucesso. Stephanie teve a oportunidade de beijar o garoto vampírico — e, segundo ela, foi ardente e abstrato.

Além de sua gratidão, Miguel também foi recompensado com um sorriso dela, mesmo que não fosse grande coisa. O mais importante mesmo fora a caneta preta. Autêntica, providenciada diretamente do estojo de Vitória. Este sim é seu prêmio, seu medalhão e ingresso para fazer a prova de redação.

O sinal do último horário acabara de tocar, e Darwin guarda suas coisas para ir direto para casa e descansar. Que dia cansativo e aterrorizante. Mesmo que ele esteja contente agora, ainda não foi capaz de esquecer a visão que tivera. Como que o Ding sabia do mistério envolvendo Paulo? Por outro lado, será mesmo que é ele quem formula as visões? Seu tio não era inteligente o suficiente para ter um laboratório, ou seja o que for aquele lugar. Poderia ser um hospital também. De qualquer forma, não há razão para confiar naquele monstro cheio de truques.

Ele se despede de Miguel e Cadu com apertos de mão e abraços, mais felizes hoje e com razão. Na saída, ele vê Bruno encostado na grade do portão. Estranho, como sempre. A única coisa que segurava... era um pano. Um pano igualzinho ao que abrigava o Ding. Darwin engole seco e tenta não demonstrar sentimento algum enquanto passa, encarando o pálido apenas pelo canto do olho. Bruno, entretanto, percebe e sorri ao rapaz, balançando o objeto familiar.

— Vocês puderam derrotá-lo. Nunca esquecerei de vocês. Posso escapar de sua memória, mas nunca escapará da minha, amigo. Você, Darwin, tem meu respeito — sussurrou. — Imaginar não é criar. É dar poder.

E acenou com um maneirismo de saudade, como se fosse um sonho nunca mais a ser sonhado novamente.




〜 L.C.

Cap. 2