Capítulo 1 - Prólogo |
Cap. 2 |
Notas do Autor
Não sei vocês, mas, quando criança, eu tive muita dificuldade em me adequar ao hábito de dormir só. Para tentar me acalmar, minha mãe dizia que meu anjo da guarda iria proteger-me e me acompanhar durante a noite inteira, e funcionou apenas uma vez. No dia seguinte, curioso, pesquisei sobre anjos e me deparei com as formas extraordinárias e intimidadoras que eles tinham sem disfarce algum; foi o suficiente para eu tremer de medo por algumas horas enquanto meus pais dormiam. Eu tive medo até de pisar no chão para chamá-los. A partir daquele dia, eu sempre temi coisas como morte ou perigo, porque isso iria convocar meu anjo da guarda. Eu evitava o infortúnio não pelo medo de sofrer, mas daquele que viria me proteger. Engraçado, não? 〜 L.C. |
Naquela manhã, a impaciência vencia a saudade. Ninguém estava de fato por ele ali.
26 de outubro. 2004 vinha esfriando, o vento estava mais forte que o comum em pleno outono alemão. Sobre os pedregulhos de uma rua afastada da cidade de Witzhave, um carro fúnebre preto dirigia lentamente, liderando o percurso de uma família. A traseira estava exposta, revelando um caixão de madeira.
Em meio aos seus parentes, andava Darwin Xenócrates Lubannus: um garoto de 14 anos com cabelos negros e levemente ondulados. Estaria mais suado se não fosse pelo frio que fazia, ou se estivesse ao menos comovido pela morte de seu tio. Na realidade, podia se dizer isso a respeito de todos lá.
O carro faz uma curva e adentra a última rua. Era uma estrada que levava para fora da cidade, para as vastas planícies, agora amarelas, repletas de carvalhos e bétulas. À direita se encontrava um pequeno estacionamento em frente a uma capela e, ao lado, um par de portões velhos e rangentes. Uma dupla de homens sonolentos abre-o, permitindo a passagem de todos.
Era um cemitério não tão espaçoso, devido à baixa população. Os mesmos homens, acompanhados dos que estavam dirigindo o veículo, erguem o caixão acima dos ombros e andam em direção à sepultura designada. Após curta procura, eles o põem no chão.
PAULO XENÓCRATES ÊXODO
☆12/02/1961 †04/10/2004
Um frei loiro de meia-idade e de vestes bem-aparentadas dá um passo à frente, segurando um livreto marrom com uma cruz dourada na capa. Ele folheia as páginas e limpa a garganta.
— Aqui ritualizamos o enterro de Paulo Xenócrates Êxodo, morto embriagado em um acidente de trânsito em Munique logo após o último domingo do Oktoberfest, no retorno para casa — recitou, como se tivesse roteirizado tudo. A seguir, ele adota um tom mais sincero. — Como posso prosseguir? Ah, irmãos... o Paulo não fora de tamanha importância sob as mãos d’Ele. Nunca pude decifrar os planos que foram apostados naquele garoto, e isso prova que ainda tenho muito a aprender.
De repente ele pausa, virando para a mãe do finado e avó de Darwin, Cecília Êxodo. Eram quase da mesma idade. Seus olhos devotos carregavam um peso, quase uma responsabilidade, como se dissessem: “Sinto muito, minha amiga”. Ela o retribui com um encarar franco que dizia: “Não há necessidade”.
Aquietado, ele notou que os rostos de todos ali não padeciam como o seu; mesmo não orgulhoso do que Paulo se tornara, não podia deixar de perdoar sua alma como Ele perdoara a sua própria. O que aquele travesso aprontou para tamanha desconsideração vinda daqueles com quem dividia sangue perante sua morte?
— ... Rezai — ordenou, pensativo.
Cumpridos os procedimentos, pediu aos coveiros que manuseassem o caixão e o enterrassem, e assim fizeram. Darwin fitava o caixão e nada mais, desinteressado em contrair energias negativas vindo dos presentes. No silêncio profundo, ele chuta uma pedrinha com seu tênis preto. Esta cai contra a superfície de madeira e emite um som inusitado.
Toc.
O quê? Ouvira errado? Toc? Era como se tivesse batido em uma porta, uma mesa, ou em qualquer objeto oco. Seria este caso o mesmo, mas... com um caixão? Impossível. Um caixão vazio? Quais as chances? Por que estaria vazio em primeiro lugar? O garoto olha em volta para ver se alguém também havia percebido; caso não tivessem, deveria contar! Mas ninguém iria acreditar. “Devo contar ao Hugo, ele deve saber de alguma coisa”.
— Ei, primo — sussurrou, mas sua fala fora interrompida quando viu Hugo, seu primo e filho de Paulo, pálido como as nuvens e lacrimejando em silêncio, seu rosto coberto pelo cabelo. “Xiiii... Melhor não”.
Após um minuto de silêncio, e da cova ter sido tapada completamente, Darwin escuta uma voz fraca e hesitante vir da sua esquerda.
— Sim?
Era Hugo, encarando-o pelo canto da visão, sua mão levantando os cabelos lisos para fitá-lo. Vestia suas roupas de sempre: uma boina bordô com listras cruzadas amarelas amarrada com fitas pretas com pingentes, uma camisa com uma única manga longa direita que acabava em uma luva sem dedos e também se conectava a um par de shorts estampada igual à boina e uma regata branca por cima, uma bolsa de utilidades acoplada ao cinto e um par de botas nos pés.
— Pode falar, Darwin. Pensei ouvir ter me chamado...
Darwin soltou um simples grunhido – uma tentativa falha de falar – quando percebe a verdadeira expressão de Hugo. Não eram lágrimas, era suor. A voz que parecia triste era nervosa e seus dedos tremiam, mesmo escondidos dentro dos bolsos. Algo não estava certo. Tinha que ter algo rolando.
— Eu... sinto muito, Hugo. Que seu pai descanse em paz e, hm, eu sei que você é capaz de seguir em frente — falou feito robô, deixando mais que explícito que não era o que tinha em mente. Pelo visto, finalmente alguém notou a irregularidade daquele enterro além do cerimonialista.
Jorge, pai de Darwin, aproxima-se e calmamente põe a mão no ombro do filho, interrompendo o assunto dos dois. Seu cabelo é loiro e tem um penteado curto, além dos óculos que usa no rosto.
— Perdoem-me os modos, mas precisamos ir. Você tem aula hoje, não é, filho? Temos que nos antecipar para chegar em Hamburgo antes que seja tarde. Vamos, Darwin. Entre no carro, já chamarei sua mãe.
— Espera, pai, eu preciso perguntar...
— Já disse para entrar no carro — calou-o, trazendo a mão que estava no ombro do garoto para suas costas e o levando de volta aos portões. Antes de partir, Jorge se vira e acena para Hugo.
— Peço desculpas, garoto. Ele tem uma redação a terminar hoje e não pode faltar. Viemos mais por você do que, bem... você sabe como era seu pai. Deveria agradecer por termos comparecido — falou com a clássica sinceridade que tinha. — Se cuida. Aproveite o tempo que tem com a sua avó; ela parece estressada, entende? Tenta compensar sendo o que seu pai não foi. Tschüss.
Hugo escuta e acena levemente com a cabeça. Mesmo imperfeitas, as palavras daquele homem puderam acalmar a instabilidade do jovem.
***
Meu primo Hugo é literalmente filho de uma puta, e tudo graças a seu pai. Paulo – meu tio – era alcóolatra e um “grande apostador”, como adorava falar. Mas se Deus tivesse prioridades distintas para cada um, ele seria o filho odiado. Perdia tudo que investia, nunca terminava o que começava e, eventualmente, deixou de sonhar. Morreu vivo.
A mãe do garoto se chama Hannah. Não sei muito sobre ela, pois saiu de Witzhave para depois de parir o filho a trabalho, se é que me entende – prostituição. Provavelmente o Hugo deve ter vários irmãos perdidos pela Alemanha. O cabelo liso dele é herdado dela, inclusive.
Como o pai dele não era decente, quem o educou fora a vovó Cecília. O tio só lhe serviu de exemplo do que não ser. Mas, infelizmente, ela já se encontra idosa, então o Hugo tem que cuidar dela junto do meu outro tio Hanz, que é o mais velho dentre os três; veio ele, depois o Paulo e, por fim, minha mãe Maria. Toda essa família é de parte materna e vem e dessa cidadezinha, em uma casa meio distante do subúrbio.
Como eu ia dizendo, o Hugo ficará sem guardião, então estão decidindo entre deixá-lo com a família do tio Hanz aqui em Witzhave ou mandá-lo para Hamburgo e morar comigo, e é lógico que eu quero que ele venha! O Cadu e o Miguel iriam com a cara dele, eu acho. Quem sabe, não é?
Ah, sim, eu não falei quem são esses dois. São meus amigos do colégio. Mas o que me intriga mesmo... é a natureza daquele caixão.
Francamente, por que o caixão estava vazio? Não posso confirmar nada, mas aquele som... aquele som não é comum! Não é como se o tio estivesse vivo ou, sei lá, tenha virado um morto-vivo. Se o caixão está vazio, é por um bom motivo. Um motivo realista.
Uma das possibilidades é de não estar vazio e eu só estar paranoico, de fato. Outra seria de ele estar cremado lá dentro ou do corpo estar bem decomposto, visto que ele morreu há algumas semanas. Também podem nunca terem encontrado o corpo dele; aqui na Alemanha não existe limite de velocidade nas estradas intermunicipais, então vai que ele tenha sido lançado para o mato após a colisão? Ele tinha uma moto, o que reforça mais ainda essa ideia. Se eu não fosse eu, concordaria com a essa última proposta. Mas se tem algo que eu aprendi, é que tudo é possível.
***
Após aproximadamente uma hora de viagem, Darwin é despachado em frente à escola. Com a mochila nas costas e ainda inquieto em relação ao mistério, ele percorre pátios e corredores que costumam estar muito bem ocupados. Estava lá mais cedo que o normal devido ao horário do enterro, então o lugar estava bem mais limpo e quieto. Era possível observar o fim dos passadiços, para se ter noção.
Mas não tinha importância, o que queria mesmo era ver seus amigos e esquecer daquela dúvida que martelava sua cabeça incessantemente. Andou, desceu uma escada e se encontrou no pátio, onde sempre tinha mais pessoas e agora, mesmo cedo, não era diferente. A fraca luz do céu nublado atingia os bancos e árvores, agredidos pelo vento que anunciava uma chuva que estava por vir.
Sentados em um banco de mármore ao lado de uma cantina, estavam Carlos Eduardo – ou Cadu – e Miguel. Cadu era o mais alto entre os três; tinha um cabelo curtíssimo e encaracolado, vestia uma regata rosa-clara com um símbolo de um coração flechado no peito esquerdo e shorts pretos. Miguel era loiro de um tom esbranquiçado, e seu penteado atingia seus ombros; vestia um suéter vinho-escuro e calças castanhas, com um corte na área das canelas que mostrava suas meias pretas e as costas dos seus sapatos.
Miguel parecia animadíssimo ao falar com Cadu, segurando um objeto pequeno demais para Darwin identificar de longe. Apenas podia imaginar o que era pois o menino estava simplesmente gritando a respeito do pertence. Seria algum tesouro? Curioso, ele corre para olhar mais de perto.
Era uma cartinha holográfica.
— Sério que você não está impressionado? O que deu em você hoje, cara? — ele continuava gritando, sem perceber a presença do amigo logo atrás dele. Cadu olha para Darwin e dá uma risadinha, o que acorda Miguel do delírio e o faz virar de costas.
— Você sabe que eles mudaram as raridades, não é? Holográficas só são valiosas se forem de segunda evolução para cima — o de camisa roxa falou, como se estivesse esclarecendo algo para um bebê. — E a sua é de evolução única.
Darwin e Cadu caem na risada enquanto Miguel olha para o rosto do amigo e para o brilho do papel em suas mãos. Só podiam estar de falácia com ele. Se fosse verdade, teria lido em algum lugar!
— Ei! É mentira!
— Não, não é. Leia o pacote que você abriu.
— Com muito prazer — retrucou, pegando a mochila do chão e vasculhando. Os pacotes que ele abriu após acordar deveriam estar no... cadê o estojo? Eles notam sua expressão aflita e se inclinam para observar.
— E aí, cadê o pacote? — cobrou Cadu.
— Era para estar no estojo, mas eu... eu acho que o esqueci em casa antes de vir para cá!
Após a revelação, mesmo rindo, os outros dois notam um detalhe bem mais relevante que um mero pacote: a prova de redação que terá agora no primeiro horário. Sem caneta, não há redação, e sem redação, é zero. Darwin cutuca as costas do amigo e sussurra:
— ... Ô, Miguel. A prova.
Antes que pudesse indagar o que fosse, a ficha cai. O loiro trava e pega a agenda com as mãos trêmulas, abrindo na página daquele dia.
TERÇA-FEIRA (26/10)
• Sr. Kepler agendou a prova de redação sobre Primeira Guerra Mundial.
— Ó, Deus... — murmurou.
Ele a guarda de volta bruscamente e se levanta do banco, empurrando Darwin para o lado e vestindo a mochila de volta. Ele se vira para os amigos e fala, suando frio:
— É o seguinte, nós vamos conseguir uma caneta emprestada! Temos muito tempo até a aula começar para perguntar a todos os estudantes enquanto eles chegam!
— O quê? Nós? Não sei se ainda não te ensinaram isso, Miguel, mas o problema é exclusivamente seu — debochou Cadu, enquanto também levantava. — Eu espero vocês na sala, minha mochila já está lá. Vou nessa...
E caminhou, virado de costas para os dois. Miguel não aceita e se vira para Darwin, vendo que ele segurava uma lapiseira. Ele dá uns passos à frente e passa a mão no objeto antes mesmo de perguntar:
— Ei, parceiro, me faz uma boa? Me empresta isso aqui, por favor?
— Como? Claro. Só não roube, ouviu? — alertou, apontando o dedo contra ele.
— Relaxa.
Miguel aperta algumas vezes a trava, soltando um centímetro de grafite e avançando em direção a Cadu. Ele segura o braço do outro e aponta a lapiseira contra seu pescoço.
— Você vem, não é? — perguntou, soando mais como uma ordem. O amigo olha pelo canto do ombro, sem encostar no grafite, com medo e raiva.
— Seu moleque...
Cadu dá um leve chute em Miguel, o empurrando para trás e se virando de volta para o grupo. Ele suspira e cruza os braços, olhando para eles meio nervoso.
— Está bem, eu vou.
— Ótimo! — respondeu, mordendo o grafite e mastigando-o antes de devolver o material para Darwin, que olha para ele e em seguida para baixo em desgosto. “Esquisito”, pensou ele.
E assim, o primeiro desafio se desenrolará! Darwin, Miguel e Cadu deverão interrogar todos os colegas do colégio a procura da caneta preta e salvar a nota do amigo! Eles têm uma hora antes da aula começar, mais do que o suficiente para achar um exemplar – ou será que não? Antes tarde do que nunca! Rumo à caneta preta!
Cap. 2 |